quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Epitáfio

Sabem como o coração dela parou de bater??
Nascera naturalmente, em alguma esquina da cidade pequena. Fora ofertada dois lanches, um pão grande e um hamburguer gorduroso simplesmente impróprio ao seu consumo. Apesar de tudo fora salva, trazida até uma casa.
Foram alguns anos, poucos meses escondida do dono da casa, que não queria cães, e depois revelada na fase adulta. Cativou-o. Se tornou companheira em todas as horas, cadela de rua que era, feia, com dentes tortos. O dono original talvez tivesse preferido dar-lhe um tiro na tempora; teve dó e não o fez. Não sei ao certo, mas é possível dada a assimetria que tinha. Um animal feio.
Certa vez fora atacada na jugular. Ganhou dois furos profundos na garganta que lhe sangravam a vida o dia inteiro. Fora dificil convencer os donos, antigos e ignorantes que eram, a leva-la a veterinária. Contudo consegui, e ainda me lembro da frase: 'Se não fizerem isso essa cadela vai morrer'.
Foi salva. Como foi necessário pegá-la a força tornou-se muito mais arredia. Agressiva. Atacava sem muito sinal, mas mesmo assim era inteligente. Até mesmo foi mãe... pariu uma ninhada inteira e ganhou, além da agressividade, pequenos espasmos faciais como marca.
Precisava de um banho, a cadela. Ganhou um parasita nas costas e havia um seringa preparada de castração química que também deveria ser aplicada. Violenta que era decidiu-se por uma solução - anestesia.
Não sei quantas vezes disse que deveria ser aplicado um sonífero para cães. Os donos, ignorantes, assentiram logo. Um terceiro arrumou um remédio. Garantiu que sabia o que estava fazendo.
Não vi a caixa de Dramim antes que mais da metade da cartela tivesse sido ministrada ao animal, em intervalo de quanto? Duas horas, talvez.
Ela não dormia. Estava sonolenta, contudo. Aquilo não era remédio veterinário, não senhor... a dose certamente não fora respeitada.
'Precisamos cuidar dela, vamos pegá-la a força'. Deixei que tomassem conta. Posso ter crescido, mas ainda não posso com os mais velhos que fazem troça, pois gosto de animais.
Era dia trinta de dezembro de 2010. Hoje. Havia rojões, pois em pouco mais de vinte e quatro horas era ano novo. Morte nova.
Não ligo quando animais morrem. Não sentiria nada pelo espirito moribundo da cadela se simplesmente morresse quando fora mordida na jugular, ou em tantas outras vezes que fora atacada pelos animais da vizinhança. Aquilo, contudo, não foi uma morte. Foi tortura, seguida de assassinato.
Talvez a overdose do remédio tenha enfraquecido seu coração. Os rojões a assustavam, mas não se enfiou dentro da casa como fazia normalmente, pois estava dopada. Foi presa, colocaram-na na focinheira. Quando ela começou a puxar a corda demais ainda poderiam ter evitado. Não sei como falar com ele. Sei que ele se responsabilizou. Não estava lá, mas certamente fora ele a segurar a corrente, pois era o mais forte dos dois homens. Ainda teria havido tempo se a soltassem quando perceberam que se debatia demais e tinha espasmos. Meu pai me disse que teve espasmos.
Fui espiar. Jazia morta, mas eu não disse nada. Sou cientista, e serei um biólogo - a morte é natural e de modo algum lamentável. Seria assim se ele não tivesse olhado para mim, com uma lata de cerveja ainda na mão, e se justificado: 'Morreu de ruim'.
Se qualquer ser vivo fosse conduzido a morte por ser ruim, tenho certeza que eu teria nascido morto. Isso foi tortura seguida de assassinato. Nada muda o fato.
Não sei se ainda vou voltar atráz... mas passarei o ano novo de preto. Com ele? Com ele eu não falo mais. Não é a questão de ela ter morrido em sua mão; é o desrespeito com que morreu. O que caracteriza o assassino não é o desejo de matar - nesse caso seria eu mesmo um assassino - nem a concretização do fato, pois a morte e a competição são naturais. O desrespeito pela vida caracteriza o assassino.
Não sei mais onde enfio minha raiva.