sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

.Orquídeas.

Tinha sido uma noite não-dormida. O dia anterior fora nada mais que uma abstinência continuada do remédio doce, já usado de forma homeopática há dias. A dose final, ainda que aguada pelos quilometros, veio salvar-lhe a alma as 3h57 do dia 24 de dezembro. Não se importava se era véspera de natal.
Houve um urro de nostalgia naquela manhã gélida de orvalho. Ao não acordar pela manhã decidiu-se por um banho, um agrado ao corpo suado de insônia, da reviravolta sob os cobertores inúteis que ninguém puderam aconhegar a contento. Com as cortinas ainda fechadas, e o sol sendo subjulgado pelos vários filtros que a atmosfera e a geografia da paisagem lhe impunham além dos tecidos própriamente ditos no interior da casa, caminhou decidido. Olhos coçando, irritados. Boca de sabor rançoso, pele oleosa. Nada parecia estar no lugar, senão a luz do sol recém-nascido e seu choro de pássaros ao deixar o ninho.
Optou por manter as luzes apagadas. Pouco podia ver no escuro do banheiro, e lembrou-se que este era um favor a criação de novas terminações nervosas em seu cérebro, inútil. Ligou a água e permitiu que ela lhe caísse pelos ombros. Não era fria ou quente, e como não era dos meio-termos ajustou a temperatura para mais que escaldante. Talvez se sentisse no inferno: molhado, cansado, escaldado, cego. Com certeza sentia-se em casa: tranquilo, aquecido, presenteado com cada canto animal.
Pensou na caminhada matinal. Pensou durante todo o enxague do que era. Não foi.
Em lugar disso abriu as venezianas e ligou o computador. O lusco-fusco não permitia enxergar as teclas. Escreveu qualquer coisa que se lhe passava pela cabeça atordoada. Leu. Releu. Considerou uma babaquice; pensou em justificar-se; pensou em não fazê-lo; por fim o fez de qualquer maneira covarde.
Não voltou a reler o texto como o ritual exigia e abandonou-se sobre os cobertores inúteis. Caiu no sono. Caiu no sonho. Abstinência. Falta.
O resto do dia foi como digo: abstinência, abstinência, abstinência. Outra dose. Discussão; abstinência.
Tristeza.
Foi uma tristeza meio disfarçada, meio escondida do resto do mundo. Criança que era não se furtou a avisar o resto do mundo de maneira simples: 'Triste'. Velho que era evitou dar explicações. Aquilo fora uma falha, não um pedido de atenção. Agiu normalmente.
Sem demonstrar desespero, buscou por todos os meios. Tentou por todos os meios. Não entendeu. Abstinência, abstinência, falta... dose! Recebeu a dose quando acordou seu anjo, e deixou-a dormir novamente para acolher seus demônios. Abstinência.
Orquídeas são só parasitas. Na falta de seiva elaborada simplesmente não desabrocham flores.

.Abstinência.Abstinência.Abstinência.Abstinência.Abstinência.Abstinência.

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